Quem controla o nó que me aperta?
Atualizado: 11 de mar. de 2021

- Eu não sei do que você está falando.
Com a mesma rispidez com que me respondeu, Clara desvia os olhos do outro lado da mesa.
É uma tarde aborrecida como qualquer outra. Consigo ver o couro cabeludo da minha irmã imóvel à minha frente, enquanto ela rabisca concentrada e freneticamente num caderno vermelho desgastado. Faz dias que ela não larga aquele amontoado de papel velho. Não faço ideia do porquê.
Estou tentando digitar meu primeiro currículo. A questão é que não conseguia me concentrar no meu quarto, que subitamente começou a parecer grande demais perto da falta de qualificações, certificados e outras baboseiras de que eu precisava para preencher o modelo que encontrei na Internet. Meu plano é enviar o currículo para todas as empresas que estão precisando de uma estagiária administrativa. Para as que não precisam, também.
Em uma tentativa frustrada de fazer circular o ar que parecia me comprimir com minhas próprias expectativas e ambições, resolvi ir para a sala.
Nem mesmo o toque hipnotizante e constante dos meus dedos contra o teclado consegue afastar aquela sensação embolada e confusa de que algo está para acontecer. Me faz sentir como se minhas tripas, neurônios e tudo mais estivessem dando vários nós. Nós que eu não consigo ver, só sentir.
Nós que eu não consigo desfazer.
Eles me apertam de tudo quanto é jeito. Às vezes, é como uma pontada atrás da orelha, um puxão em um único fio de cabelo, algo parecido com o início de uma unha encravada, uma queimadura daquelas que mal deixam vermelhidão, um início de azia que não vinga. A certeza de um cisco no olho que desaparece quando confrontada com o espelho.
E o pior de tudo é que, no momento em que eu me dou conta de que o nó está ali, ele parece afrouxar um pouco. Um pregador de peças astuto que sempre consegue se livrar da pena.
Tem também as vezes em que é mais como o susto de estar em um carro estabanado que freia sem mais nem menos. A surpresa é violenta e desagradável, e, de repente, eu tenho certeza de que o nó aperta tanto, mas tanto, que quase se rompe (e leva minhas metades junto).
É nesses momentos que, se encosto as mãos em meu rosto, consigo sentir um calor afetado. Dá pra sentir a prova da peça pregada, mas sem conhecer o autor. E juro que eu poderia enlouquecer procurando o maldito.
Foi um desses que me sacudiu naquela tarde, durante minha reunião forçada, silenciosa e cheia de lacunas com minha irmã na sala. Quando cheguei no cômodo, Clara já tinha clamado o território para si. Era mais um motivo para os nós me apertarem, mas eu apenas me sentei à sua frente na mesa de jantar, o que fez com que ela automaticamente tapasse o que estava escrevendo com o corpo. Nada de novo por aqui: Clara construiu verdadeiras fortalezas em torno dela mesma ao longo do tempo, e tenho a suspeita de que nem o nó mais apertado do mundo poderia parti-las ao meio.
Mesmo assim, em um ímpeto que eu gostaria muito de ter controlado, pergunto se Clara também tinha sentido aquilo. Outra coisa que não é novidade: sou tão insistente quanto os meus nós. Não sei se isso é bom ou ruim, mas sei que saber controlar impulsos é, teoricamente, uma habilidade cara para o mercado de trabalho. Está vendo por que é tão difícil acreditar no potencial do meu currículo?
Clara não reage na hora. Não tenho nem mesmo uma confirmação de recebimento da mensagem. Nunca imaginei que me pegaria desejando que conversas presenciais tivessem recursos como os do WhatsApp, mas pelo menos ainda daria tempo de deletar a pergunta.
Demora um pouco, mas Clara levanta a cabeça com a lentidão que eu conheço bem. De todas as suas dissimulações, a existência arrastada é a mais antiga. Tanto que adquiriu um aspecto passado, e toda vez que ela prolonga um gesto, eu tenho a impressão de que se encostasse na pele brilhante, a superfície amoleceria feito fruta velha.
Um ar de indagação vibra em uma frequência baixa ao redor do seu corpo.
Quase me arrependo de ter deixado a pergunta escapar, porque com Clara não vale. Ela é de um jeito aborrecido com tudo e surpreso com nada. Para ela, a vida tem uma racionalidade absoluta que tira muitas coisas do radar. No fundo, eu a admiro por isso. Mais no fundo ainda, me enche de raiva.
- Acabei de sentir um choque. - disfarço.
- Deve ter sido o tapete. - ela nem mesmo sacode os ombros.
E assim, olhando para o tapete gasto, tenho uma certeza, revestida pelo brilho fosco da minha insistência. Não é súbita como os nós que tentam me partir ao meio. Vem como um sussurro frouxo, leve e amigável.
- Não esse tipo de choque.
Consigo que ela franza a testa. E então continuo.
- Tem certeza que não sentiu nada? Acho que vi uma faísca perto de você.
As pálpebras de Clara se arrastam para cima feito duas dançarinas exaustas se despedindo da plateia. As pupilas fazem uma caminhada até o canto inferior direito dos olhos, e seu pescoço acompanha com relutância o trajeto. Ela olha para o tapete.
Imito o gesto com a pressa e ansiedade que conheço bem. O tecido sob nossos pés está gasto e manchado em tons que lembram hematomas envelhecidos. A peça, como tantas outras coisas, é parte fundamental daquele apartamento. Nossa tia nunca o trocou por isso: temos a impressão de que tirá-lo dali seria como tirar o coração de dentro de uma pessoa que ainda vive.

- Eu não sei do que você está falando. - é a resposta seca.
Meu coração bate acelerado com uma adrenalina palpitante. É quase como se eu realmente tivesse levado um choque.
Eu não espero que Clara entenda minhas preocupações. Não espero descobrir que ela também vive com uma mistura de emoções entaladas e apertadas na garganta, como abelhas em uma caixa. Não tenho expectativas de que ela se sente ao meu lado e se ofereça para me ajudar com o currículo, ou que compartilhe o que tanto rabisca naquele maldito caderno vermelho. Nem espero que me conforte pelo sufoco de não saber o que fazer com uma vida que nem ao menos começou direito. Eu só queria ser, pela primeira vez, a que prega as peças.
- Clara, é sério. Olha a tomada, vê se não está com mau contato ou alguma coisa. - simulo a maior carga de preocupação possível. Logo, me lembro de que não preciso fingir.
Dessa vez, a testa pálida enruga mais rápido. É quase genuíno. Enquanto ela se vira para checar a parede, posso sentir meus lábios estremecendo.
Clara se abaixa, e eu continuo contando cada movimento que arranco dela como uma vitória. É que a cada reação que ela esboça, os nós afrouxam um pouco. Com algum grau de controle, sou eu quem os estou afrouxando.
- Não tem nada de errado com a tomada, Camila. Você deve ter imaginado coisas. - e retorna à posição de largada.
É aí que está. Naquele momento mesmo, eu estou imaginando todo tipo de coisa. Estou imaginando o que aconteceria se de fato a tomada começasse a pegar fogo. Teríamos que sair correndo dali e deixar o tapete queimar. Eu teria que deixar meu currículo semidigitado se perder em um amorfismo de metal e plástico.
Até que não parece má ideia.
Me pego em um sentimento de empatia pelos pregadores de peças. Não é que não se preocupem em serem pegos. É que planejam com cuidado a hora de fugir. Controlam o aperto do próprio nó.
- É, acho que só fiquei preocupada com os fios.
Se irritação ou curiosidade induzida pela minha insistência, acho que nunca vou saber porque, dessa vez, Clara levanta a cabeça tão rápido e me olha com uma atenção tão pouco característica.
Direciono meu indicador para um dos cantos do tapete, onde os fios dos aparelhos eletrônicos do cômodo formaram um nó desengonçado. É curioso que nunca tenhamos feito esforço nenhum para escondê-los ou simplesmente desfazer a bagunça. Junto do tapete maltratado, ficam expostos e inertes para quem quiser ver.
E assim, de repente, no destino do acaso, me parece incrivelmente irônico que eu quisesse que aquilo fosse uma mensagem para a minha irmã. Porque enquanto ela encara aquele amontoado familiar com confusão, eu finalmente entendo. E decido: deixo que permaneça ali.
