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Quantas vozes fazem a minha?

Eu odeio elevadores. Odeio salas muito pequenas. Odeio qualquer cômodo que não tenha muitas janelas. Odeio, odeio mesmo, não conseguir circular.


Odeio ainda mais confundir minha própria voz. Isso sempre acontece nesses lugares apertados.


É por isso mesmo que trabalhar aqui é perfeito. A loja é tão enorme que dá até pra fingir que as prateleiras de produtos de beleza são infinitas e que as paredes não estão ali.


- O que você disse? Confundir que voz?


Uma mulher alta, com um rabo de cavalo milimetricamente preso, um delineado assimétrico de gatinho e uma roupa inteiramente preta me olha por trás do balcão, a expressão confusa entortando ainda mais a maquiagem. Só de olhar pra ela, sei que é daquelas pessoas que acham que a única forma de parecer elegante é usando preto. Só preto.


- Desculpa, pensei alto. - Dou o melhor sorriso possível e começo a pegar os itens jogados na cesta de compras.


Um delineador preto. Um batom tão fraquinho que nem dá pra dizer que é vermelho. Um demaquilante. Será que ela sabe que uma sombra roxa ficaria perfeita com o tom de pele dela?


Antes que eu perceba, já coloquei uma amostra grátis de sombra lilás na sacola. Recebemos uma nova paleta qualquer essa semana e é a primeira vez que encontro a pessoa certa pra essa promoção surpresa.


Parece (e é) idiota, mas é o tipo de sombra que me tachou de jovem rebelde em casa. Nada que tenha causado briga ou algo do tipo, mas me lembro até hoje da cara da minha mãe quando comecei a sair cada dia com uma maquiagem completamente, vamos dizer, diferente.


Sempre me divirto quando vem aquela voz de puro desconforto na minha cabeça:


- Vai… assim pra entrevista, filha?


Ao que meu irmão, com seu tom de afronta forçado por ser alguns anos mais velho e de outro casamento, acrescentou:


- É assim que os jovens se expressam hoje em dia, mãe.


Nota: ele é jovem. Me lembra uma harpa quebrada, tentando com uma mistura de graça e desespero ser uma coisa que não é.


Eu não estava mirando em “rebelde”, mas acho que pode ser. Não estava mirando em nada específico. E é isso: enquanto eu não souber o alvo, que mal faz aceitar que decidam por mim?


- Confusão.


A voz surge na minha cabeça, um timbre grave e de uma certeza contraditória. De repente, tenho a impressão de que vem de fora e olho para a cliente, esperando algum sinal de interação. Nada: ela só digita a senha do cartão na maquininha, sem nem fazer contato visual.


Vida que segue. Nesse ponto, já me acostumei com isso. E antes que eu me convença da minha própria loucura, não é que eu ouço vozes. É que, ao longo do tempo, escutei (e aprendi) algumas coisas:


- Sempre ouça os bons conselhos que te dão.


Essa é uma frase clássica da minha mãe. Na época, ela queria provar que eu devia ouvir o conselho dela. Ao longo da vida, escutei muitas versões parecidas dessa sugestão, em outras vozes.


Tradução: acabei com a mania de absorver a voz de todo mundo como uma verdade alheia, mas mais concreta e segura do que a minha própria.


- Você é muito nova pra saber quem você é. Nessa época, tudo é fase!


Uma professora do ensino médio me veio com essa quando cortei meu cabelo pela primeira vez. Na cabeça dela, aparentemente, eu estava fazendo um anúncio da minha identidade absoluta. Não sei se eu voltaria a usar ele super curto daquele jeito, mas valeu a pena experimentar.


Tradução: meus esforços de entender qual dessas vozes é realmente minha não servem pra nada. Eu testei, e realmente é bem complicado. Porque agora, de alguma forma, é como se todas fossem um pouco minhas mesmo.


O problema é que, ao mesmo tempo, vivo escutando que é hora de escolher. Duas décadas de vida e eu preciso dar um jeito de decidir como vão ser as próximas... sete?


Por isso, sinto inveja da moça do rabo de cavalo perfeito, que já terminou a compra e agora vai seguir com uma vida que parece razoavelmente bem decidida. A sombra lilás provavelmente foge demais dos planos dela, mas gosto de pensar que talvez ela a use. Talvez, só talvez, ela esteja escondendo alguma coisa na diferença gritante entre o cuidado com o rabo de cavalo e o que parece ser um pouco de impaciência com a maquiagem.


Assim como deixo minha imaginação flutuar com a possível rebeldia que ela esconde, gosto de imaginar pra onde ela vai. O que vai fazer depois daqui?


Há um tempo, ouvi um conselho sobre fazer listas de afazeres organizando meu dia. Tentei. Juro que foi tão deprimente perceber que eu não tinha lá muitos planos além de fazer sacolão, ir pra aula de dança e eventualmente sair com o JP, que simplesmente desisti. Mas nem tudo foi em vão: descobri um exercício divertidíssimo pra fazer com as tais das “to-do lists.”.


Vejo muita gente todo dia. Todo tipo de pessoa passa pela loja, pelo meu balcão, por mim. Escuto a voz delas, mas é só isso. Não sei mais nada sobre nenhuma. E isso é novo pra mim: não estou acostumada com vozes que não se confundem com a minha. Que somem em minutos, com uma despedida vazia e envergonhada.


Bom, nada mais a minha cara do que me enfiar no meio. Ou melhor, enfiar minhas fantasias no verso do comprovante que a maioria dos clientes nunca quer levar.



Eles todos vão. E eu fico. Fico com o que minha imaginação quiser deles.


Não lembro exatamente quando comecei com isso, mas tenho um sistema simples: quando o cliente não quer a sua via da notinha, eu uso o verso pra (por que não?) criar o que tem além daquela voz. Descobri que é muito mais divertido imaginar as listas de afazeres de estranhos. Mais fácil também.


No final das contas, dá pra me distrair bastante fantasiando sobre como seria se aquelas listas fossem realmente minhas. Será que eu me acostumaria a andar só de preto? Acho que eu poderia trabalhar com Marketing. Só seria um trabalhão prender meu cabelo em um rabo de cavalo tão certinho.


- São 17h. Depois de tudo isso, deve dar umas 23h. Quantas tarefas será que eu aguento até umas 2h da manhã?


É. Não sei se consigo ouvir essa voz vindo de dentro. Não é como a daquele cara super estiloso que basicamente levou todas as cores de lápis de olho.



Já costumo comprar de brechó, adoraria trabalhar desenhando roupas e tá aí uma coisa que eu acho que faria muito bem: vencer um reality show. Se tem tanta gente que se descobre nessas coisas, por que não eu?


- Tem que ter muito estômago pra aguentar tantos olhos em você.


Tem razão. Estou acostumada com um certo nível de atenção, mas quanto será queé demais?


Quem sabe um meio termo? Teve aquele casal que parecia ter acabado de sair da academia. A primeira coisa que me chamou a atenção foi o cabelo dela, totalmente platinado. Durante o resto do dia, fiquei pesquisando os prós e contras de descolorir o cabelo.


Também fiquei pensando nos prós e contras de ter um relacionamento. Malhar junto, acompanhar um ao outro nas compras, o quê mais? Eu não saberia dizer. Não com o meu histórico de casos românticos que nunca foram pra frente. Aí uma lista que eu dei conta de fazer!



Eu me daria super bem com uma rotina dessas. Quer dizer, faço todas essas coisas super bem. Só não sei quanto a fazer com outra pessoa junto.


- Não é só malhar que exige comprometimento.


Não consigo firmar compromisso nem com uma versão de mim mesma, que dirá com outra pessoa. Pro inferno com o comprometimento. O jeito é aprender a viver sempre na dúvida.


- Eu sei que tá uma bagunça, mas não quero ficar na dúvida não!


Uma menina que parece ter a minha idade interrompe meus pensamentos com uma risada longa. Sua voz é tão familiar que eu nem consigo dizer de onde vem a lembrança. De repente, percebo que devo ter falado a última parte dos meus devaneios em voz alta.


Ela espalha uma quantidade absurda de maquiagem no balcão. Quer saber minha opinião.


- Desculpa pela confusão, mas você tem cara de quem sabe o que tá fazendo.


Dou uma risada que provavelmente saiu alta demais. Por essa eu realmente não esperava. É engraçado como ela parece completamente tranquila no meio da bagunça de delineadores, paletas de sombra, batons e… se eu for citar cada um dos produtos, vamos ficar aqui o dia inteiro. Ela olha em volta, como quem se certifica de que não tem mais ninguém esperando na fila, me pergunta a que horas meu turno acaba e, por fim, sorri:


- A gente tem tempo.



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