Quanta distância é distância demais?
Atualizado: 21 de jan. de 2021
Isso aconteceu mesmo?
Ok, ok, ok, ok, ok, ok. Calma. Respira. Como que respira?
Pega o celular, cadê o celular? Era pra estar aqui na escrivaninha, meu Deus. Onde que eu enfiei esse celular?
Ah, é claro que ia estar na minha frente. Justo no meu colo. Como eu não senti o peso dele?
Bom, pra ser justo comigo, tem outras coisas pesando agora.
Não sabia que dava pra se sentir tão pesado assim. Quer dizer, é claro que pra isso bastaria um campo gravitacional com aceleração maior, mas enfim.
Sabendo que não é o caso, não imaginava que seria possível. Muito menos eu, esse palito de gente. Preciso continuar malhando. Malhando? JP, SE CONCENTRA E PEGA O CELULAR!

Recebi o resultado da seleção de bolsistas. Não tinha parado pra digerir isso. Não parei nem mesmo pra falar em voz alta.
Eu não só recebi o resultado, como fui aprovado. Entende? Eu fui aprovado naquele programa de pós-graduação difícil demais, inalcançável demais, impossível demais.
Longe. Demais.

O que eu queria dizer era:

Mas é CLARO que você sabia, né, JP? É óbvio que eu sabia exatamente disso na hora em que me inscrevi. Continuei sabendo, durante todo o processo de inscrição, que passar significaria me mudar. De cidade, de casa e, muito além da quilometragem da coisa, de vida. Eu sabia, mas então talvez não seja suficiente saber.
O que é suficiente?
Calma, suficiente pra quê? Por que diabos quero saber o que é suficiente? Eu devia estar caminhando em direção à cozinha agora, passando pelo corredor minúsculo dessa casa que eu vou ter que parar de chamar de minha em breve, abrindo a geladeira desgastada que mais faz barulho do que resfria a comida (vou ter que comprar uma nova?) e pegando aquela cerveja que sobrou da última noite em que o Gui veio.
O Gui. Ai, merda, o Gui.

Nem percebi que me levantei da cadeira. Sabe-se lá há quanto tempo estou andando em círculos (com o menor diâmetro possível) no chão do meu quarto. Meu rosto tão grudado na tela do celular que não duvido nada que eu bata em alguma quina e ganhe mais um hematoma pra minha coleção de marcas desastradas.
Tem alguma coisa rangendo. Não sei direito se é a madeira do chão ou meu bruxismo nervoso.



Eu passei, porra. EU PASSEI!
Chegou o próximo grande passo. Passo. Isso me lembra de checar se vou conseguir cumprir minha meta de passos hoje. Cara, lá vamos nós de novo: isso é hora de pensar em exercício físico? Às vezes fica difícil de acreditar que foi essa cabeça que me conseguiu a bolsa.
6 mil por enquanto. Caramba, 6 mil? Esse tanto de passos e eu nem fui tão longe.
Todos os milhares de passos que damos todos os dias, indo de um lado pro outro sem muita reflexão ou consciência, são pequenos passos. Não que isso signifique que sejam piores: eles nos levam aonde queremos ou precisamos estar. São os passos que me levavam das aulas de história até as aulas de física (ainda bem), da escola até a loja dos meus pais, do caixa vazio até as prateleiras de produtos para fazer o inventário quinzenal. Depois, na faculdade, esses mesmos pequenos passos voltaram para me mandar da sala até o laboratório, da cantina até a biblioteca, do ponto de ônibus até o estágio.
Tudo bem medido, delimitado, certo e definido. Dá até pra contar.
Não sei dizer com certeza se o que me fez tentar a bolsa de pós-graduação foi um passo pequeno ou grande. Na época, o processo todo me pareceu uma coisa tão distante que dava a impressão de ser minúscula.
E olha só: agora, esse momento milimétrico pode muito bem definir o resto da minha vida.

Acho que fiquei hipnotizado pela vibração do celular. Tanto que parece que quem está vibrando sou eu.
Vibrando de medo de atender à chamada do meu próprio namorado. Ridículo, JP. Ridículo!
Ainda não parei de caminhar sem rumo pelo quarto. Já devo ter percorrido o perímetro tantas vezes que daria para ir caminhando até a casa dele. Pequenos passos. Pequenos passos me impedindo de dar um passo maior.
É, acho que até a vodka barata da Ana cairia bem agora.
Conheço bem a foto de perfil chacoalhando na tela do celular. Fui eu que tirei, enquanto ele comprava chiclete de uva. Um sabor tão familiar, um momento que eu conheço tão bem quanto a palma da minha mão. Que vibra, vibra, vibra. Enquanto eu ando, ando, ando.
Deixa eu ver se eu entendi direito: estou com tanto medo do que está na minha mão quanto do que eu nunca nem sequer segurei. Caramba.
Medo de uma mudança que ainda nem começou. Medo do que eu ainda nem deixei pra trás. Medo das despedidas que ainda não chegaram. Ainda não, JP. Ainda não.
Como se eu e a mudança fôssemos totalmente estranhos. Ninguém é. Mas o ponto é que existem mudanças e mudanças. Existem recomeços e começos. O “re” deixa tudo mais fácil. Fazer de novo: fazer melhor, fazer direito. É como se a equação já existisse. Você só precisa substituir a variável.
É que eu acho que essa coisa de “dar o primeiro passo” nem sempre é real. Talvez uma mentira que contamos a nós mesmos pra fingir uma grandeza que não existe. Várias mudanças são só repetições do mesmo primeiro passo que já demos antes. Essa reciclagem é barata e satisfatória, porque são passos pequenos disfarçados de passos grandes. Aí fica fácil: é só arrumar um sapato novo.
Pensa bem, todo ano novo é um recomeço. Parece um novo passo, mas você já deu versões parecidas desse mesmo passo várias vezes. Só está substituindo o x por um novo número. Uma vez por ano, para ser mais exato. Sempre sabendo que já caminhou um dia, que já resolveu aquela conta várias vezes antes. Sabendo que tem uma referência muito confortável pra te apoiar.
O que acontece quando essa referência some? Sério, o que acontece? Porque eu me sinto exatamente assim agora. Não tenho nem sapato pra isso.

Ainda não. Ainda não achei uma resposta definitiva.
Enquanto isso, o jeito é ficar com teorias e testes. Usar fragmentos de equações que eu já conheço pra montar uma nova? Usar esse caminho todo atrás de mim para tomar impulso? Ninguém disse que eu nunca mais vou poder dar uma olhadinha pra trás. Ou literalmente pra frente. Às vezes, essas coisas não estão nem a um passo de distância.

Continuo vibrando, mas agora é de rir. Sempre esteve bem na minha frente mesmo.
A ironia é toda essa. Estou indo fazer pós-graduação em Física e me esqueci do básico: a distância é relativa, depende da referência, e isso nunca foi só uma expressão científica.
Se tem alguma coisa que eu sei (e preciso continuar sabendo se quiser essa pós) é que não dá pra esquecer o básico. Não dá pra esquecer o que veio antes.
E, no final das contas, não é como se eu precisasse mudar tudo agora. Né?
Pequeno ou grande, um passo de cada vez.
