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Como deixar minha marca no mundo?

Quando era pequeno e ainda não entendia o que saía da boca das pessoas, aprendi que as imagens também falam.


Me lembro bem até demais da cena supersaturada de um filme - que com certeza não era pra minha idade - onde a personagem principal agarrava o braço de um outro, prestes a cair de um precipício, com toda a tensão do mundo. Era como se fosse ela própria ali, suando, ofegante, com linhas de expressão que ganhavam vida própria, condenada àquela tragédia.


Lembro que vivi a ansiedade e o desespero em mim. Claro que na época não dei esses nomes, pequenos demais pra dar conta do que foi. Não quis e não precisei, porque bastava ter visto e sentido os tons de amarelo intenso e vermelho terroso explodindo na TV. Lembro também que simplesmente não prestei atenção nenhuma ao som. Não lembro se houve diálogo, se tocava alguma música intensa e emocionante. Só me lembro da imagem. Da imagem e dos meus olhos arregalados onde ela refletia, impressa ali como uma marca de nascença.


Aquela imagem; a imagem de que segurar é o esforço mais intenso e nobre que alguém pode fazer e de que largar é impensável, impossível, “im-”. Aquela imagem produziu em mim uma certeza de significados parecidos.



Falando em coisas que são só minhas, entra uma história engraçada. Não engraçada de um jeito sorriso-tão-aberto-que-parece-desconfortável. É mais pra uma testa-enrugada-como-quem-precisa-de-respostas.


Débora, minha vizinha que tem nariz de chihuahua e cabelo de leão: “Ontem fiquei pensando numa coisa.”


Cadu, meu outro vizinho, que lembra um cactus com braços desproporcionais: “Vai continuar pensando ou vai contar pra gente?”


Débora, com os olhos apertados em pequenas faixas verdes de desaprovação: “Se vocês tivessem um superpoder, qual seria?”


Um debate estupidamente acalorado - daqueles que parecem o momento exato em que você olha pro céu nublado e vê um raio perfeito se formando - começou ali, com os dois tentando decidir se era melhor ser invisível, voar, se teletransportar, ou até respirar embaixo d’água. Eu não soube responder, porque nenhum daqueles superpoderes parecia suficientemente potencialmente meu.



Eu entendo que isso é meio impossível, mas estamos falando de superpoderes. Que são tão impossíveis quanto não estar no espaço-tempo. Que é uma ideia tão impossível que fica difícil de acreditar que algumas coisas conseguem simulá-la.


Difícil de acreditar, mas fácil de provar: pra mim, é a sensação das mil e uma luzes que parecem me atravessar na pista de dança, a noção de ser uma das silhuetas indistinguíveis de pessoas que provavelmente estão só com metade do cérebro funcionando - e, mesmo assim, ocupam e preenchem 101% do espaço.


Demorei bastante para gostar de festas. Atualmente, eu adoro, porque me sinto completamente suspenso. É como se as horas passassem de um jeito diferente e os lugares perdessem sua condição física e palpável. E, convenhamos, isso tem seu valor numa realidade em que vivemos basicamente esmagados pelo eixo espaço-tempo. Esmagados como aquelas folhas secas que caem e estampam as ruas com pontilhados multiformes. Eu adoro pisar naquelas coisas.


Cadu sempre dá festas no quintal minúsculo da sua casa. Da janela do meu quarto, consigo passar horas olhando pro espaço vazio e mal irrigado e pensando em como ele vai de um mini-quadrado-meio-marrom pra uma explosão-infinita-de-luz-cor-e-gente. Sem sentido. Sem eixo. Sem espaço-tempo.


Naquela noite, aconteceu muita coisa. Certamente coisa demais pra caber nas 4 horas em que estive na festa, o que só reforça minha teoria. Débora tinha arrumado uns refletores baratos na internet que deviam ser do tamanho da minha mão, mas foram suficientes pra mascarar completamente o fato de que estávamos no menor quintal do bairro. Não demorou muito pra esquecer.


Amarelo. Rosa. Verde. Azul. E de novo. Amarelo. Rosa. Verde. Azul. E de novo. Rosa. Verde. Azul. Amarelo. Era essa a ordem? Verde. Azul. Amarelo. Rosa. Não. O azul sempre vinha por último. Quando o vi pela primeira vez, era azul.


Me lembro perfeitamente bem do momento em que saímos do quintal, eu, Cadu, Débora e ele, esse menino estranhamente alto, que parecia, da forma menos infantil e mais interessante do mundo, uma cenoura. Cadu pegou sua maquininha de tatuagem, que comprou porque tinha resolvido aprender com um primo distante que tatuava no centro, e fez um experimento em cada um de nós. Exceto no menino alto. Ele ficou o tempo inteiro espremido no canto do quarto, soltando uma risada ou outra de vez em quando. Mesmo assim, de alguma forma, era a única coisa em que eu conseguia prestar atenção. É como eu disse: noções distorcidas de espaço.



Aliás, a partir daquele dia, tudo ficou mais marcante do que o normal. Pra mim, que já me deixo afetar demais, foi um período especialmente irritante. Levei um tempo pra entender que aquela chateação tinha culpa, mas ainda não tinha nome. Por isso mesmo, eu precisei perguntar ao Cadu sobre o menino-cenoura-do-canto-do-quarto.


Cadu, com um meio sorriso que deixava parte da cara dele parecendo uma fronha enrugada: “O JP? Ele é amigo da Ana.”


Pegou meu celular, seguiu o recém nomeado JP no Instagram e me devolveu. Assim, sem mais nem menos.


Cadu, indo em direção à porta da frente da sua casa, sem se dar ao trabalho de se virar: “Ele gostou de você também.”


Dava pra ouvir que ele ainda estava sorrindo. Dava pra sentir que eu também.


O JP era quase exatamente o que eu tinha imaginado. Isso foi perfeito, porque odeio surpresas. E, ainda assim, todos os dias eram como uma surpresa boa - o que me fez questionar, depois de algum tempo, se eu realmente odiava surpresas. Nunca se sabe.



Por fim, eu estava quase totalmente convencido de duas coisas: gosto de surpresas e tenho meu super poder ideal. E junto dessas novidades, minha certeza antiga continuava crescendo. Aquela certeza, aquela imagem, nunca fez tanto sentido. Era preciso me agarrar. Segurar com toda a força do mundo. Nem uma completa suspensão do espaço-tempo podia me fazer soltar.


Só tem um problema: eu não contava que a outra mão poderia se soltar por vontade própria.


Não demorou muito pra eu voltar a odiar surpresas depois dessa. Quando o JP me contou sobre o resultado da seleção de bolsistas, achei que era uma surpresa boa. Mesmo com os quilômetros de distância, não era meu plano soltar. Outra surpresa: as pessoas têm planos diferentes. E, quando esse é o caso, não adianta segurar.


Depois do resultado, ele só queria falar sobre o que iríamos fazer. Trazia pra conversa como se fosse tão simples quanto decidir o que jantar, qual filme ver naquela noite, que sapato calçar de manhã. Na época, eu tinha muita certeza do que iríamos fazer. Hoje, sei que era justamente por isso que evitava o assunto. Não queria abalar minha certeza nem se ela fosse falsa. Eu achava que fazer isso significaria soltar.


De boas intenções o mundo realmente está cheio. O que aconteceu foi exatamente o contrário do que eu pretendia com aquela força toda. Aquele aperto intransponível, aquela certeza cega; foram eles que me fizeram incapaz de continuar segurando, sem eu nem perceber.


Juro que às vezes ainda sinto a silhueta da mão dele aqui. Não sei se ele continua sentindo a marca da minha lá.


Como estava dizendo, não demorou muito pra voltar a odiar surpresas. Assim como não demorou muito pra voltar a não acreditar em superpoderes e a querer suspender o espaço-tempo. E não é o fim do mundo: basicamente, eu estou de volta. Só ainda não decidi se isso é bom ou ruim.



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